Este caso, apresentado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, trata de direitos de crianças e adolescentes, especialmente do direito à educação. A precarização do ensino público na rede estadual desencadeou o fortalecimento do movimento social organizado dos alunos da rede pública estadual, que realizou ocupações nas escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro como forma de resistência, manifestação e protesto. A atuação da Defensoria Pública, valendo-se do instrumento processual denominado Ação Civil Pública, deu-se, principalmente, com o objetivo de apurar e prevenir violações de direitos dos alunos envolvidos na ocupação e de acompanhar a execução ordens de desocupações. Na apresentação detalhada do caso, estão disponíveis, também, fotos, vídeos e a petição inicial da Ação Civil Pública ajuizada.
Nome da/o(s) Participante(s)
Marina Lowenkron – Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro
Rodrigo Martins Azambuja – Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro
Eufrásia Maria Das Virgens – Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro
Instituição/Organização/ Movimento Social: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
I – Resumo da Situação-Problema
No início de março de 2016 observou-se no Estado do Rio de Janeiro o fortalecimento de um movimento social organizado por alunos da rede pública estadual que, seguindo prática já recorrente em outros Estados e países da América Latina, ocuparam os prédios de escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro como forma de resistência, manifestação e protesto. A primeira unidade escolar a ser ocupada no Município do Rio de Janeiro foi o Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes, na Ilha do Governador, fato ocorrido em 21 de março de 2016. Na sequência, começaram a surgir diversas outras ocupações, tanto na capital como pelo interior do Estado. O movimento se expandiu de forma tal que em maio de 2016 já havia cerca de 70 escolas ocupadas por todo o Estado.
Importante notar que as ocupações surgiram como uma cadeia, mas não foram inauguradas a partir de um único movimento centralizado de estudantes. Não havia qualquer organização estudantil que assumisse oficialmente a posição de liderança do movimento em questão. Do contrário, a estrutura das ocupações era horizontalizada. Embora alguns alunos possuíssem maior protagonismo que outros e fosse possível identificar o apoio de algumas entidades estudantis, os manifestantes negavam o reconhecimento de qualquer liderança hierárquica nesse sentido. As formas de ocupação variavam, sendo algumas parciais, isto é, conciliando a ocupação com a realização de aulas, mas a maioria se tratava de ocupações plenas, ou seja, durante as manifestações as atividades letivas ficavam suspensas. Importante, porém, ressaltar que o período das ocupações coincidiu com o de extensa greve dos docentes da rede pública estadual, de modo que as aulas já ocorriam de forma precária devido à paralisação dos servidores públicos. A greve, segundo narravam os alunos, também ocasionava evasão escolar e aumento do número de alunos faltantes. Em todos os casos acompanhados, as ocupações foram organizadas por alunos das unidades, os quais elaboravam calendários de atividades educativas a serem realizadas durante a permanência dos alunos na escola.
As manifestações objetivavam, de forma geral, protestar contra a precarização do ensino público na rede estadual, fechamento de unidades e turmas, condições estruturais das escolas, pouca abertura da Secretaria Estadual de Educação ao diálogo e à participação democrática dos alunos na gestão das escolas, dentre outras questões as quais serão melhor abordadas nas pautas a serem analisadas a seguir. Nas diferentes unidades escolares a decisão acerca da ocupação ocorreu de modo diverso, sendo algumas deliberadas em assembleias de alunos, outras em reuniões, outras por meio de colheita de assinatura dos alunos que apoiavam o movimento, dentre outras formas. Durante as ocupações, os alunos, de forma geral, conservavam o bem público realizando faxinas periódicas e vistorias nas unidades. Ademais, eram realizadas atividades como “aulões” com professores convidados, oficinas, debates e outras práticas relacionadas aos propósitos da ocupação.
Pode-se observar que as ocupações consistiram, portanto, em atividade-protesto, seja para dar visibilidade aos problemas enfrentados na educação pública estadual, seja concretamente para reivindicar mudanças e soluções para as questões apontadas. REIVINDICAÇÕES DO ALUNOS Nas ocupações, cada unidade escolar se organizava de forma autônoma, embora houvesse contato entre os alunos das diferentes escolas ocupadas. Assim, cada ocupação possuía uma pauta própria e no curso do movimento das ocupações os alunos de diferentes unidades se reuniram para elaboração de uma “pauta unificada”. Ocorre que não chegou ao conhecimento dos autores documento formal a respeito do tema. A despeito disso nas visitas realizadas nas unidades, bem como nas reuniões e audiências das quais participaram os alunos pode-se extrair as seguintes demandas abaixo descritas. Deve-se destacar que a compilação ora apresentada decorre da escuta dos Defensores não sendo propriamente uma pauta oficial do movimento em questão. Não obstante isso, para a finalidade de organização da atuação da Defensoria Pública formulou-se a seguinte listagem: a) Gestão Democrática e Eleição Direta para Direção das Unidades Escolares Uma pauta bastante sensível e comum a todas as alunas e alunos das ocupações dizia respeito à democracia nas escolas. Foi bastante ressaltado que o espaço escolar não deve formar apenas um estudante, mas também ensinar cidadania e princípios que guiarão os alunos na sua vida em sociedade. De se destacar que o artigo 205 da Constituição da República Federativa do Brasil aponta nesse sentido ao afirmar o Constituinte que a educação tem por objetivo a qualificação para o trabalho. igualmente o pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania. Dentre os princípios que orientam a prestação do serviço público de educação, para o atingimento dos objetivos elencados, o artigo 206 da Lei Fundamental previu a gestão democrática do ensino na forma da lei, bem como a liberdade de apender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber.
Como anseios da comunidade discente agrupados nesse ponto, destacam-se alguns instrumentos, práticas e espaços a serem discutidos e repensados. São eles:
a.1) Criação, função e espaço ao Grêmio Estudantil nas escolas; Nem todas as unidades ocupadas possuiam formalmente um grêmio estudantil constituído e os alunos entendiam relevante a existência da entidade representativa dos interesses dos estudantes em cada uma das escolas. Houve relato de situação na qual o Grêmio foi indicado pela Direção da escola e não eleito pelo conjunto dos alunos, o que importaria em não reconhecimento do mesmo como órgão de representação. Entendiam os alunos ouvidos que tal situação é inadmissível e que as agremiações, pela sua própria natureza, deveriam ser formadas por meio de voto majoritário do corpo discente. De outro lado, revelou-se usual em casos nos quais existia o Grêmio, ao mesmo não ser destinado qualquer espaço físico dentro da escola. Reivindicava-se, portanto, que em cada unidade se tivesse espaço destinado às atividades do grêmio. No mesmo passo, em algumas unidades visitadas nas quais havia grêmio, o diálogo de seus integrantes com os demais alunos, através de visitas às salas de aula, era condicionado a autorização prévia da Direção escolar. Em um dos casos, há relatos de que mesmo havendo o pedido por ofício, o grêmio foi impedido de passar nas salas. Com relação a essas situações, pretendiam os alunos que a Direção respeitasse a representação estudantil pelos grêmios e não fossem toleradas medidas que obstassem o contato dos alunos representantes com os demais representados.
a.2) maior peso ao Conselho Escolar; Poucas foram as menções espontâneas à existência do Conselho Escolar como órgão capaz de garantir voz aos alunos nas questões referentes ao seu espaço escolar. No entanto, quando o tema foi mencionado os alunos se queixaram da pouca utilidade prática dos Conselhos existentes. Assim, entendiam que, como espaço deliberativo com representação plural, os Conselhos deveriam ter mais espaço e importância nas deliberações sobre os assuntos atinentes às práticas e rotinas nas escolas.
a.3) participação dos alunos em processos decisórios; Constatou-se, por fim, pleito de que os interesses e opiniões dos estudantes fossem levados em conta, sobretudo para escolha de atividades extracurriculares, aulas diferenciadas ou realização de projetos em cada uma das escolas. No entanto, a questão da gestão democrática tinha por principal reivindicação o fim do processo unilateral de escolha da Direção das unidades. Alegavam que em outros tempos a Direção das unidades era ocupada por pessoas queridas pela comunidade escolar, que nutriam relação de confiança e afeto com os alunos, responsáveis e professores. No entanto, desde a adoção do critério qualificado pela SeEdUC como meriocrático de escolha do ocupante do cargo, a escolha dos profissionais que o ocupavam dificultava a relação da direção com a comunidade, gerando efeito indesejável. Os estudantes entendiam que a vontade democrática da comunidade é a única forma legítima de escolha do ocupante do cargo. Embora reconhecessem que a qualificação profissional do diretor fosse necessária ao desempenho da função, sugeriam que o processo de capacitação fosse posteriormente oferecido ao representante eleito.
b) Infraestrutura do ambiente escolar Ainda no sentido de agrupar demandas comuns a todas as unidades, foram bastante recorrentes as queixas referentes aos cuidados estruturais com as escolas. Para fins de organização, pode-se dividir as queixas e demandas segundo os seguintes temas:
b.1) Conservação da estrutura existente Muito se apontou sobre as deficiências na conservação da estrutura existente como falta de corte de grama e mato nos espaços externos, tetos sem forro, suspensão do serviço de limpeza, infestação de refeitórios e outros espaços por ratos e baratas, falta de manutenção nos equipamentos de ar condicionado, falta de pintura nas salas, não reposição de lâmpadas queimadas, salas utilizadas de forma equivocada como armazenamento de entulhos nas quais foram encontradas fezes de ratos, penas de pombos, bem como animais mortos, entre outras demandas similares. Cobrava-se, portanto, solução definitiva e constante para manutenção do espaço público.
b.2) Subaproveitamento dos recursos materiais disponíveis. Outra queixa bastante repetitiva dizia respeito ao subaproveitamento de espaços e estruturas existentes, porém inutilizados. São os casos de bibliotecas que permaneciam trancadas ou acessíveis apenas em horários restritos pelos alunos. Mencionou-se, ainda, nesse tocante, salas de informática com computadores e internet às quais os alunos afirmam não ter acesso. Nesse ponto, foi informado que os alunos realizam pesquisas para trabalhos escolares por meio de seus aparelhos celulares ao invés de terem acesso ao espaço na escola para essa finalidade. Em algumas unidades, houve queixas ainda de salas de ciências (laboratórios), artes e música sem acesso aos alunos e, nos CIEPs há queixa de abandono da horta orgânica. Destaque-se, nesse ponto, interessante iniciativa no CIEP 403, em Volta Redonda, de cultivo de mudas de hortaliças durante a ocupação para recuperação da horta há muito inativada. Por fim, os estudantes ainda encontraram livros didáticos subaproveitados, em alguns casos empilhados em salas de aulas sem que fossem destinados aos alunos.
b.3) Limpeza no ambiente escolar No tocante à limpeza, os estudantes relataram que por falta de pagamento ao serviço terceirizado de limpeza, a sua prestação foi suspensa ou precarizada na rede pública estadual. Em uma das unidades os alunos relataram que a Direção só autorizava a saída de alunos das salas de aula depois que estes realizassem a faxina do local, tendo em vista não haver profissional que realizasse o trabalho em tela. b.4) Uniforme escolar No tocante a questão dos uniformes, foi informado que não há oferta regular de uniformes gratuitamente aos alunos da rede estadual. No entanto, na maior parte das escolas, o uso de uniforme é obrigatório, o que faz com que os alunos tenham que gastar em média R$20,00 (vinte reais) por peça como condição para ingresso em sala de aula. Em alguns casos houve relato de que os uniformes seriam vendidos na Direção da escola, sem que houvesse informação sobre a destinação das verbas. Em outras unidades, mencionaram que os uniformes seriam adquiridos em lojas privadas que vendem uniforme da rede pública. Desse modo, os alunos reivindicam o fornecimento gratuito de uniforme como extensão do direito à educação, vez que o óbice econômico que algumas famílias encontram para adquirir as vestimentas afastam o aluno da escola e expõe os alunos oriundos de famílias mais pobres.
c) Fim do SAERJ/SAERJINHO e Currículo Mínimo O Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro – SAERJ – e sua versão bimestral – o SAERJINHO existente desde 2008, foi criado com o objetivo promover análise do desempenho dos alunos da rede pública do Rio de Janeiro. Sua finalidade, segundo a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, seria monitorar o padrão de qualidade do ensino e colaborar com a melhora da qualidade da educação. A regulamentação da prova em questão se encontra na Resolução SeEDUC 4437/2010, a qual prevê sua utilização como instrumento de intervenção pedagógica, o que foi reforçado pela Portaria de Avaliação SeEDUC/SUGENN nº 419 de 27/09/2013. Em todas as unidades com as quais a Defensoria Pública teve contato foi eleita como uma das pautas prioritárias o fim do SAERJ e do SAERJINHO. Sobre a referida reivindicação, os alunos informavam que o incômodo não era com a existência de um sistema de avaliação qualitativa do ensino prestado, mas sim com o método escolhido e o fato de o sistema que começou para avaliar o serviço ser hoje utilizado como importante componente da avaliação do aluno. Apontava-se que o sistema SAERJ/SAERJINHO é uma avaliação externa que não se adequava ao conteúdo dado em sala de aula. Embora a Secretaria de Educação alegasse que a avaliação se baseava no currículo mínimo, é certo que a percepção dos alunos era de que a matéria cobrada se excedia ao referido conteúdo. Os alunos entendiam que a prova em questão não os avaliava de forma justa e eficiente. Ademais, os alunos apontam que o resultado do SAERJ/SAERJINHO era mal utilizado pelo Poder Público, pois não percebiam que a Secretaria focasse a atenção em quem teve mau resultado para fortalecer o aluno/unidade escolar, mas sim que premiavam as unidades escolares que fossem bem avaliadas, de modo a aumentar a desigualdade no ensino público ofertado em diferentes unidades da rede estadual. Alguns alunos julgavam que seria interessante bonificar como forma de estímulo o estudante bem sucedido no SAERJ/SAERJINHO, mas não a unidade escolar; para fim de evitar o fomento da desigualdade. Por fim, percebeu-se que o instrumento pedagógico em tela era utilizado de formas diversas em cada uma das unidades em termos de peso na nota global do aluno. Assim, a título de exemplo, enquanto em algumas unidades o SAERJINHO compunha 5,0 (cinco) pontos da nota, em outras unidades à avaliação era atribuída 1,0 (um) ponto, sendo certo que metade era computada na nota do aluno simplesmente pela realização da prova e outra metade para os estudantes que tivessem mais de 50% (cinquenta por cento) de acerto.
Ainda em algumas ocupações foi manifestado o descontentamento dos alunos com relação aos gastos públicos para a realização de avaliação externa. Os alunos expuseram que há notória falta de recurso para se promover a educação de qualidade, de modo que, por falta de pagamentos, serviços essenciais de porteiro e limpeza se encontravam suspensos, mas elevado gasto era empregado na realização da avaliação sem que a comunidade discente percebesse retorno que justificasse a opção do Estado de destinação de recursos para a Educação. Com relação ao currículo mínimo, isto é, versão estadual da Base Nacional Comum Curricular instituída em âmbito federal, os alunos se queixavam da sua extensão que dava pouca margem de adaptação ao professor. Ademais, lamentavam a falta de discussão acerca do conteúdo abrangido com os alunos, o que deveria ser realizado tendo em vista a diretriz da gestão democrática do ensino.
a) Alimentação: problemas na merenda escolar A temática da merenda escolar foi abordada de forma diversa em nas diferentes escolas ocupadas. No entanto, o assunto apareceu como ponto importante nas pautas de reivindicações. Em alguns casos os estudantes apontavam que a merenda oferecida não respeitava a sugestão de cardápio da Coordenação de Segurança Alimentar da Secretaria Estadual de Educação. Apontava-se, ainda, para a utilização de gorduras não saudáveis para o preparo da refeição. Em outras unidades a queixa era de que o lanche oferecido era o mesmo diariamente: refresco e biscoito, apontando-se, ainda, que o valor nutricional da opção adotada era insatisfatório. Em algumas escolas, era informado que não havia regularidade no fornecimento de outras refeições que não o lanche. Havia queixas de que as frutas oferecidas em certas escolas eram passadas, e que a quantidade de lanches distribuídos, por vezes não é suficiente para atender todos os alunos. Conclui-se que, tendo em vista a descentralização da gestão da merenda escolar, segundo orientação da Resolução SeEduc nº 4639/2010, nota-se diversidade de naturezas das reivindicações em cada uma das unidades no tocante ao assunto. A despeito disso, a questão referente à alimentação na escola era pauta recorrente, embora abordada de maneiras diversas nas diferentes escolas.
b) Portaria e inspetores escolares Os alunos alegavam que desde o ano de 2015, não havia mais funcionário responsável pela função de portaria nas escolas públicas estaduais. Com isso os estudantes ficavam inseguros, pois não há controle eficiente de entrada e saída das escolas. Além disso os estudantes também se queixavam de falta de inspetores de alunos. Assim, havia reivindicação da regularização do serviço de portaria e de realização de concursos para inspetores de alunos nas escolas da rede estadual.
c) Não punição dos alunos envolvidos na ocupação Os estudantes que optaram por aderir às ocupações reivindicavam, ainda, que não fosse tomada nenhuma medida de cunho sancionatório em relação aos mesmos. Os alunos relataram que as direções ameaçaram pais e responsáveis de trancar matrículas, punir administrativamente os responsáveis legais por faltas escolares dos seus filhos, bem como prejudicar os alunos por eventual perda de avaliações escolares. Assim, uma das pautas gerais de reivindicações é de que os participantes da ocupação e seus responsáveis legais não fossem de nenhuma forma penalizados ou responsabilizados, civil, penal, administrativo ou infracionalmente pelo exercício do direito de reunião pacífica.
II – Resumo da Ação e/ou Medidas Judiciais; Extrajudiciais e/ou Políticas Adotadas
Três dias após as notícias acerca da ocupação do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes pela mídia, a Defensoria Pública, por meio da Coordenadoria de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes – CDEDICA, ajuizou uma ação civil pública junto à Vara da Infância e Juventude da Capital, a qual teve por pedido principal determinar que o Estado do Rio de Janeiro “se abstivesse de praticar qualquer ato tendente a remover a manifestação pacífica promovida nas escolas Prefeito Mendes de Moraes, Gomes Freire e outras que viessem a ser ocupadas por estudantes da rede pública estadual de ensino, assegurando-se sua presença nos bens públicos de forma contínua e ininterrupta enquanto perdurasse a manifestação”. A ação, que tramita na 2ª Vara de Infância, Juventude e do Idoso da Comarca da Capital, sob o n° 0105730-36.2016.8.19.0001 teve efeitos estaduais, pois o pedido abrangia todas as ocupações que viessem a surgir após o seu ajuizamento. A estratégia de ajuizamento da ação no juízo da Infância Protetiva logo no início do surgimento das ocupações decorreu de notícias de que o Estado do Rio de Janeiro planejaria ajuizar a reintegração de posse em juízo diverso, o que poderia gerar decisão de desocupação de forma prematura. Antes da decisão liminar da ação, o Estado ajuizou ação de Reintegração de Posse do Colégio Estadual Prefeito Mendes de Moraes, da qual obteve liminar determinando a reintegração. No dia seguinte, a Defensoria Pública por meio da CDEDICA, interpôs um Agravo de Instrumento em face da referida decisão e o Tribunal deu efeito suspensivo ao Agravo, por entender que a competência para o julgamento da questão caberia ao Juízo da Infância, acolhendo a tese defendida.
Com a referida decisão de suspensão e a pendência de julgamento da Ação Civil Pública, ambos fatores somados à pressão política do aumento da quantidade de unidades ocupadas fez com que o Estado abandonasse naquele momento a postura litigiosa e partisse para o diálogo institucional e com o movimento dos estudantes. Paralelamente a isso, a Defensoria Pública buscou realizar contato direto com os alunos participantes do movimento para ouvir suas demandas e compreender a situação excepcional então existente. A busca de contato foi iniciada por meio da Ouvidoria Geral da Defensoria Pública, órgão ocupado por representante da sociedade civil que, por este motivo teria melhores condições de identificar lideranças ou contatos de alunos envolvidos nas manifestações, bem como orientar acerca da forma mais respeitosa e cuidadosa de aproximação com os alunos.
Foram realizadas visitas a algumas unidades ocupadas sempre com prévio contato e autorização para entrada dos integrantes da ocupação. Em cada uma das unidades visitadas a Defensoria Pública conversou com grupos de alunos para questionar acerca do histórico da ocupação, bem como das pautas de reivindicações dos estudantes de cada escola ocupada. Algumas reuniões foram registradas em ata e relatórios, os quais estão disponíveis no anexo 1 do presente documento. A partir das visitas realizadas, foi elaborado relatório das pautas, o qual foi encaminhado à Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, que em audiência pública, realizou ingerências políticas das demandas, tanto dos alunos da ocupação, como da pauta dos professores grevistas. Da referida audiência também participaram alunos das ocupações, a Defensoria Pública e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
Com base nos relatos dos alunos, em audiência especial de conciliação designada no bojo da Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria teve início um diálogo mediado. Foi determinado ao final da audiência que: I – fosse restabelecido o Riocard no período da ocupação; II – o imediato cumprimento das normativas acerca da organização dos grêmios estudantis; III – abstenção de utilização de redes sociais para fomentar antagonismo entre estudantes contrários e a favor da desocupação; IV – elaboração de levantamento por parte da Secretaria de Educação acerca das reivindicações dos alunos e propostas de atendimento detalhado; V – regularização da alimentação nos termos divulgados no sítio eletrônico da SeEduc e fornecimento de material pedagógico aos alunos; VI – reposição das aulas que ocorreriam durante a ocupação; VII – realização de reuniões de trabalho entre alunos, Secretaria de Educação, Defensoria Pública e Ministério Público Estadual, de acordo com os temas pautados pelas reivindicações dos alunos; VIII – proibição de atos de violência nas manifestações e IX – obrigação aos alunos das ocupações de autorizar a entrada nas escolas de outros alunos, funcionários, professores, diretores, viabilizando a emissão de documentos essenciais pelas secretarias das unidades. A partir de então, foram realizadas as reuniões seguindo a seguinte pauta temática: Data da reunião Tema 13/05/2016 Gestão Democrática 16/05/2016 Infraestrutura 17 e 23/05/2016 Gratuidade de transporte/ Riocard 24/05/2015 SAERJ e Currículo Mínimo 30/05/2016 Alimentação 31/05/2016 Portaria e Inspetores Todas as reuniões ocorreram no auditório da Defensoria Pública e contaram com a participação de alunos de escolas ocupadas, favoráveis e contrários às ocupações, Secretaria de Educação, Defensoria Pública e Ministério Público do Estado, por meio da Promotoria de Educação. Nesse ponto, convém esclarecer que, embora, de início, a atuação da Defensoria Pública tenha se voltado exclusivamente à garantia do direito de manifestação dos alunos das ocupações, é certo que, com o incremento das rivalidades e de um movimento designado “Desocupa”, a Defensoria, por meio do Núcleo de Fazenda Pública, passou a atender também os alunos contrários à ocupação e promover o diálogo entre ambos os lados. Ao final de cada reunião, firmou-se Termo de Compromisso entre Defensoria Pública, Ministério Público e Estado do Rio de Janeiro, os quais constituem título executivo, sendo um para cada tema abordado. Cada um dos termos firmados integram os anexos do presente trabalho, mas em suma, pode-se sistematizar os resultados de acordo com o tema da seguinte forma: a) Gestão Democrática a.1) Eleição Direta para Direção – Envidar esforços para sanção do PL 584/2015, que trata do processo eletivo para Diretor de Escolas Estaduais, aprovado pela ALERJ após pressão de alunos e professores manifestantes; – Ouvir o Grupo de Trabalho na regulamentação do PL 584/15; – Nomear o candidato mais votado em cada unidade; – Acompanhar transição da gestão vigente para a eleita; a.2) Grêmio Estudantil – Notificar formalmente todas as direções para cumprimento da Res SEEDUC 1294/86 (Grêmio Estudantil); – Destinar espaço para reunião de grêmio; – Permitir entrada de representantes do grêmio em sala de aula; a.3) Conselho Escolar – Notificar formalmente todas as direções para que fomentem e observem as atribuições legais dos conselhos escolares; – Consultar o Conselho Escolar para a escolha de aulas diferenciadas, atividades extracurriculares e congêneres; b) Infraestrutura b.1) Obras e manutenção – Repasse de R$ 15.000,00 para cada escola ocupada para reparos emergenciais; – Reforma de 185 escolas com pior indicador sobre infraestrutura (inclui 21 escolas ocupadas); b.2) Climatização – Manutenção dos aparelhos de ar condicionado nas escolas; b.3) Transparência – Publicar no site da SEEDUC e nas escolas os gastos das AAES com infraestrutura; – Publicar no site da SEEDUC todos os contratos na área de gestão da Subsecretaria de Infraestrutura; c) Transporte Escolar e Riocard c.1) Demora na emissão e entrega do cartão de gratuidade – Entrega em 30 dias; – Reclamações esclarecidas, dentro do prazo estipulado, por meio da Central de Relacionamento; c.2) Extensão da gratuidade – Extensão a atividades previstas na matriz curricular do respectivo curso realizadas fora do estabelecimento de ensino (limite 60 passes mensais); – Extensão a dias de realização de exame de ENEM e vestibular (limite 60 passes mensais); – Vale educação complementar para casos de excepcional demora de deslocamento do aluno no trajeto residência – escola (superior a 2h30); c.3) Fiscalização da prestação do serviço – Gratuidade 24 horas por dia letivo; – Oferta regular do serviço (sinalização de parada não atendida); – Funcionamento de validadores das 6h30 até às 23h nos dias letivos (direção e concessionárias); c.4) Segunda via – Gratuidade na segunda via motivada pelo desgaste do cartão, após avaliação; d) SAERJ e Currículo Mínimo d.1) Reformulação da Avaliação Externa – Último SAERJ em 2016 – Gestão democrática para formulação de novo modelo para 2017 – Promover debate sobre a forma de utilização da avaliação externa na composição global da nota – Assegurar outra avaliação para alunos com falta justificada (Portaria SUGEN 419/2014) d.2) Currículo Mínimo – Revisão periódica do conteúdo, com a participação dos alunos no processo e) Alimentação e.1) Repasse de valores para as AAEs – Orçamento do Estado e FNDE – 2 refeições para alunos de meio período e 4 para alunos de período integral e.2) Fiscalização e Publicidade – Publicação mensal de cardápio da Coordenação de Segurança Alimentar – Controle central de observância do cardápio nas unidades – Prestação de contas bimestral, incluindo verba repassada para AAEs – Fiscalização da prestação de contas das AAEs – Fortalecimento da comunicação via Central de Relacionamento, garantindo o sigilo da identificação do denunciante quando a queixa for repassada a Direção Regional ou Direção de Unidade e.3) Escolas sem cozinhas – Prazo de 120 dias para elaboração de plano de ação f) Portaria e Inspetores f.1) Portaria – Plano de trabalho com Direções Regionais para mapear locais apontados, com envio de relatório indicando soluções f.2) Inspetores – Realocação dos inspetores na rede, de acordo com necessidades locais -Plano para alocação de novos inspetores, quando houver concurso, de acordo com critérios objetivos f.3) Rotinas administrativas – Publicação simplificada das rotinas administrativas das escolas para facilitar o controle pela comunidade escolar Nos Termos de Compromissos firmados, eram criados grupos de trabalhos (GTs) por tema, para acompanhar a execução dos compromissos e pormenorizar detalhes que pudessem não ter sido abrangidos nos Termos.
Por meio dos referidos GTs, o contato da Defensoria Pública e do Ministério Público com alunos e com a Secretaria de Educação se prolongou para além do momento das ocupações, permitindo uma maior atenção das instituições do sistema de justiça para a pauta referente à educação pública estadual. Após o fim do calendário de reuniões foi realizada outra audiência especial no bojo da Ação Civil Pública, na qual os resultados foram apresentados e o juízo deferiu parcialmente o pedido da Defensoria Pública para determinar que os alunos das ocupações não poderiam impedir a realização das aulas nas unidades. Determinou-se, ainda, que os prédios administrativos da Secretaria de Educação não poderiam permanecer ocupados. Destaque-se, nesse ponto, que, no curso das negociações ocorreram delicadas situações de ocupações, como aquelas ocorridas na sede da Secretaria de Educação. Nesse tocante a Defensoria Pública compareceu para buscar mediar a relação entre alunos e Estado, sempre no intuito de impedir eventual uso abusivo da força contra os estudantes.
De especial relevância, nesse tocante, o trabalho árduo realizado pelo incansável Ouvidor Geral da Defensoria Pública, que passou noites em claro ao lado dos alunos que ocupavam a Secretaria, inclusive acompanhando a atuação policial e fomentando o diálogo entre manifestantes e o Poder Público em situações de excepcional tensão. Após a decisão de desocupação, proferida somente após os compromissos serem firmados a respeito da pauta apresentada pelos alunos, a Defensoria Pública buscou mediar situações de tensão derivada das ocupações, seja no tocante ao acompanhamento de desocupações, seja na mediação dos grupos rivais que surgiram ou ganharam espaço dentro de uma mesma comunidade escolar por divergências ocorridas no período das ocupações.
O trabalho em tela foi acompanhado pelo Ouvidor Geral da Defensoria Pública e pela Coordenação de Mediação. Portanto, o papel da Defensoria Pública consistiu, em termos gerais, em: i) compreensão do fenômeno das ocupações e seu histórico; ii) apuração e prevenção à violação de direitos dos alunos envolvidos na ocupação; iii) captação das pautas para encaminhamentos, seja sob a forma de tutela coletiva dos direitos reivindicados e já amparados em normas existentes, seja para direcionamento das demandas que exigiriam alteração normativa/legal aos órgãos públicos com atribuição; iv) acompanhamento de execução ordens de desocupações; v) mediação escolar para prevenir ou solucionar conflitos decorrentes dos fatos ocorridos nas ocupações.
III – Parceiros Envolvidos
A atuação da Defensoria Pública no caso em tela teve como principais parceiros os próprios alunos que nos apresentaram suas demandas e inquietudes, consentindo com a atuação da Defensoria Pública como uma das mediadoras do conflito. Em verdade, embora o trabalho seja apresentado pela Defensoria Pública, os estudantes devem ser tidos não como simples parceiros, mas antes como principais protagonistas da prática ora apresentada. De essencial contribuição a parceria firmada com a Ouvidoria Geral da Defensoria Pública, de modo a facilitar o diálogo entre a instituição do Estado e a sociedade civil. Mas para além de canal de diálogo, a Ouvidoria Geral desempenhou importante função de mediação e fiscalização do Poder Público em momentos de especial tensão acerca do cumprimento de ordens de desocupação e resolução de conflitos internos das comunidades escolares. Por fim, importante reforço para a negociação com o Poder Público decorreu da atuação articulada com a Promotoria de Educação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, que participou de todas as reuniões decorrentes da Ação Civil Pública e da elaboração e assinatura de todos os termos de compromissos firmados.
IV – Resumo dos Resultados Obtidos
Convém repisar que as ocupações são movimentos sociais autônomos entre si, embora conectados pelo objetivo comum de melhoria nas condições na educação pública estadual e na forma de pleitear e reivindicar as mudanças que os estudantes entendem necessárias. As pautas mencionadas no trabalho representam as demandas expressas no momento da entrevista realizada pela Defensoria Pública. No entanto, por se tratar de processo social em curso é certo que as condições, pleitos e demais características estão em processo constante de discussão e construção, de modo que não constituem realidade estática. De todo modo, pode-se concluir que as manifestações se desenvolvendo de forma pacífica e zelosa com o patrimônio público. As pautas revelavam preocupações e demandas próprias de estudantes, mobilizados pela melhoria na educação e incremento de sua participação democrática na sociedade, em especial na comunidade escolar. Nesse sentido, a Defensoria Pública, dentro da sua missão constitucional de garantia dos direitos humanos, tutela dos interesses das crianças e do adolescente e na defesa da democracia e do princípio da gestão democrática do ensino, deu às pautas os direcionamentos para dentro da sua atribuição, garantir que as reivindicações dos alunos fossem conhecidas e, na medida do possível, atendidas pelo Poder Público. No entanto, é importante destacar que o protagonismo do movimento em tela é dos alunos que realizaram as ocupações, os quais elegeram suas pautas, escolheram seus métodos de reinvindicações e estratégias negociais com o Poder Público.
A Defensoria Pública enxergou o momento como propício ao diálogo entre Poder Público e sociedade civil e aproveitou o contato com a comunidade escolar para captar demandas coletivas referentes aos interesses do público alvo de sua atuação. Os compromissos firmados ainda estão sendo implementados, mas já apresentaram resultados concretos, como a eleição para Direção de Escolas, ainda no final de 2016. Destaca-se que os compromissos não beneficiavam apenas os alunos/unidades de ensino das ocupações, mas toda a rede estadual, ou seja, cerca de 1.000.000 (um milhão) de estudantes usuários do serviço público estadual de ensino. Ademais, compreende-se que a atuação da Defensoria Pública foi capaz de prevenir conflitos mais graves, como ocorridos em outros Estados, nos quais um movimento legítimo de alunos foi tratado como problema de segurança pública e removido com força policial sem muita negociação e diálogo prévio. Certo é que o fomento da participação democrática, seja garantindo o direito de manifestação pacífica, como de reivindicação e construção conjunta de soluções vai ao encontro dos objetivos institucionais da Defensoria Pública de garantir o Estado Democrático de Direito e a Prevalência dos Direitos Humanos. Por meio da atuação, tutelou-se simultaneamente direitos fundamentais de primeira geração – liberdade de associação e manifestação pacífica – bem como direitos sociais, mais especificamente a tutela da educação pública de qualidade.
Por fim, a prática permitiu a democratização da própria instituição que se colocou aberta às demandas do público, em especial os alunos, abrindo seu espaço para reuniões e GTs que pautaram a atuação. Se, por um lado, a experiência proporcionou educação em direito para os alunos envolvidos, que discutiram leis, regulamentos e políticas públicas, por outro representou verdadeiro aprendizado e reconstrução do fazer profissional pela desafiadora forma de atuar, reconstruída a todo tempo de acordo com ponderações e ebulições próprias da juventude que muito nos tem a ensinar. Defensoria Pública, Ministério Público e mesmo o Poder Judiciário tiveram que reinventar sua forma de atuar para dar conta das questões postas, e de se adaptar aos novos desafios postos que exigiram ferramentas não usuais. A pauta não abrangia tal reivindicação, mas por via indiret,a o movimento foi capaz de questionar e democratizar as práticas do sistema de justiça. Lição que fica para os próximos desafios como um precedente.
V – Documentos