AÇÃO CIVIL PÚBLICA SOBRE OPERAÇÕES POLICIAIS NA MARÉ

Resumo

Este caso, apresentado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, trata de direitos de segurança pública e racismo. Em 29 de junho de 2016, foi realizada mais uma operação policial no conjunto de 16 favelas que compõem o complexo da Maré, iniciada à tarde e motivada pela busca de um foragido da justiça, que desencadeou um intenso tiroteio e resultou em algumas pessoas vitimadas por “balas perdidas”, uma ferida e outra morta. A atuação da Defensoria Pública, valendo-se dos instrumentos processuais da tutela provisória de urgência antecedente e da Ação Civil Pública, deu-se, principalmente, com o objetivo de fazer cessar o gravíssimo risco à vida e à integridade física dos moradores que inviabilizava o exercício de atividades rotineiras. Na apresentação detalhada do caso, estão disponíveis, também, vídeo e notícias.

O Caso

 

Nome da/o(s) Participante(s):
Daniel Lozoya – Defensor Público
Lívia Casseres – Defensora Pública

Instituição: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro – Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH) e Núcleo Contra a Desigualdade Racial (NUCORA)

Estado: Rio de Janeiro

I – Resumo da SituaçãoProblema

No dia 29 de junho de 2016, em mais uma operação policial no conjunto de 16 favelas que compõem o complexo da Maré – um dos territórios mais populosos da cidade, com cerca de 47 mil domicílios e 142 mil habitantes, população maior que 96% dos municípios brasileiros. Tal operação foi iniciada à tarde e motivada pela busca de um foragido da justiça, mobilizando um intenso tiroteio e resultando em algumas pessoas vitimadas por “balas perdidas”, uma ferida e outra morta. Também gerou a interrupção das aulas, e paralisação geral das atividades nas comunidades, situação bastante frequente, e inclusive, neste dia, uma biblioteca infantil foi alvejada por diversos disparos de arma de fogo de grosso calibre.

Buscando algum tipo de intervenção protetiva, organizações da sociedade civil atuantes na comunidade juntamente com presidentes de associações de moradores locais procuraram o NUDEDH com vistas a cessar esta situação que expõe o gravíssimo risco à vida e à integridade física dos moradores, inviabilizando o exercício de atividades rotineiras, o que caracteriza violação de diversos direitos básicos, tais como: o de ir e vir, de estudar, trabalhar, inviolabilidade domiciliar, além do sofrimento psicológico decorrente do fato de viver sob o clima aterrorizante de tiroteios e ser atingido por uma “bala perdida”, bem como danos patrimoniais. A situação-problema é o retrato das consequências da política de segurança pública no Rio de Janeiro de “guerra às drogas” adotada para determinados territórios marginalizados – as favelas. A política de enfrentamento bélico, com veículos blindados conhecidos como “caveirões”, a utilização de armamento pesado e operações frequentes denominadas de “incursão” (que de acordo com o dicionário significa “penetração súbita de uma força militarizada em território estrangeiro; investida, ataque, invasão”), resultam em mortes, medo e danos. Desta forma, os moradores de favela são tratados como população civil de um exército inimigo, de sorte que as mortes decorrentes do confronto armado com agentes estatais nesses locais, direta (por vezes, execuções sumárias) ou indiretamente (“balas perdidas”), são vistas apenas como danos colaterais – previsíveis, porém admitidos durante as operações policiais.

Uma frase emblemática da lógica diferencial que orienta o pensamento hegemônico das autoridades de segurança pública sobre a atuação nas favelas, citada na petição, foi proferida por um secretário de segurança no sentido de que: “um tiro em Copacabana é uma coisa, na favela da Coréia é outra”, expondo a hierarquização de vidas e o tratamento discriminatório imposto, uma vez que, tendo em vista a alta densidade populacional nas favelas, a vida nestes territórios é desvalorizada pelas autoridades de segurança pública. Importante observar, ademais, que recentemente o Estado brasileiro foi denunciado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão da falta de devida diligência na apuração de casos de execuções extrajudiciais por agentes policiais, através de uma “investigação exaustiva, imparcial e eficaz, em um prazo razoável”, “em um contexto e padrão de uso excessivo da força e execuções extrajudiciais levadas a cabo pela polícia no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro. Além disso, a Comissão constatou que o contexto em que ocorreram os fatos do caso foi tolerado e inclusive patrocinado por instituições estatais. A Comissão também estabeleceu que este contexto inclui falta de mecanismos de prestação de contas e situação de impunidade em que permanecem estas violações. (…) De fato, as investigações foram feitas com o objetivo de estigmatizar e revitimizar as pessoas falecidas, pois se deu enfoque à sua culpabilidade e não à verificação da legitimidade do uso da força.”. Trata-se do caso “Favela Nova Brasília”. Outra abordagem também utilizada foi a argumentação no sentido de denunciar o racismo institucional e estrutural-temática ainda pouco compreendida e trabalhada pelos atores do sistema justiça– subjacente a tais práticas da política de segurança pública nacional.

O Brasil é o país com mais homicídios no mundo, em números absolutos. Essa violência letal distribui-se de modo com a sobre representação da população negra, a ponto de se falar em genocídio da juventude negra. O Mapa da Violência em 2016 aponta que, entre 2003 e 2014, o número de homicídios por arma de fogo no seio da população branca diminuiu 26,1%. Todavia, no mesmo período aumentou 46,9% na população negra. Em 2014, pode-se afirmar que morrem, proporcionalmente, 158,9% mais negros do que brancos no país. A proporção de destaque da população negra nas estatísticas de homicídios violentos aponta para o racismo como elemento estruturante das políticas estatais de proteção ou desproteção da vida. E este dado está em direta correlação com a atuação irracional das agências de segurança pública nos espaços geográficos ocupados por negros no Rio de Janeiro, tais como as favelas e as periferias.   Em suma, a situação-problema é bastante complexa e retrato das abissais desigualdades social e racial que marcam profundamente a sociedade brasileira. Busca-se a intervenção judicial como meio para forçar maior transparência, prestação de contas e accountability nas políticas de segurança pública, e, rompendo o paradigma de estado de exceção vigente nas favelas, reduzir danos.

II – Resumo da Ação e/ou Medidas Judiciais; Extrajudiciais e/ou Políticas Adotadas

Inicialmente foi requerida no plantão judiciário noturno do dia 29 de junho de 2016 uma tutela provisória de urgência antecedente, inovação trazida pelo novo CPC, de forma coletiva. Pleiteou-se a suspensão imediata das buscas domiciliares, pois a operação policial já avançava a noite e a Constituição somente permite o cumprimento de ordem judicial de buscas domiciliares durante o dia. Outrossim, postulou-se a intimação da autoridade policial no comando da operação a fim de que fossem prestados esclarecimentos acerca das denúncias de abusos, bem como fossem adotadas para proteção dos moradores não envolvidos em confronto armado com a polícia, notadamente as crianças e adolescentes em saída da escola e nas atividades das instituições. Posteriormente houve o aditamento e emenda da petição inicial para juntada de mais provas e maior elaboração da ação. Foram feitos novos pedidos, inclusive de tutela de urgência, a saber: a determinação da apresentação pelo Estado de um plano de redução de danos, com a proteção de crianças, adolescentes, mulheres e idosos; a determinação da presença obrigatória de ambulâncias nas operações policiais, conforme prevê a lei estadual; a determinação de instalação de câmaras de vídeo e áudio e sistema de localização por satélite (GPS) nas viaturas blindadas (“caveirões”), sob pena de suspensão da utilização de tais viaturas enquanto não for comprovado o devido funcionamento dos referidos equipamentos; a designação de superior hierárquico para fiscalizar, em tempo real, através do monitoramento das câmaras das viaturas, a atuação dos policiais durantes as operações com os veículos blindados; a determinação ao Estado que cumpra as requisições da Defensoria Pública e do Ministério Público disponibilizando acesso às imagens e sons das câmeras e o rastreamento do sistema de localização por satélite (GPS), bem como fornecer relatórios sobre as operações policiais com informações detalhadas sobre pessoas feridas e mortas, presos, apreensões, consumo de munição, relação de armamento e de policiais participantes dentre outras informações pertinentes ao controle externo da atividade policial e à proteção de direitos humanos; a proibição de operações policiais para cumprimento de ordem judicial durante o período noturno; determinar a lavratura de auto circunstanciado a ser apresentado juntamente com a pessoa detida na audiência de custódia a fim de viabilizar o controle posterior da busca domiciliar; a proibição de que informações obtidas de forma anônima sirvam de justa causa para invasão de residências.

III – Parceiros Envolvidos

Organizações da sociedade civil: Redes de Desenvolvimento da Maré e Luta pela Paz Associações de Moradores das comunidades da Maré: Nova Holanda, Parque Maré e Rubem Vaz.

IV – Resumo dos Resultados Obtidos

Foi concedida a liminar pelo juízo plantonista a fim de determinar a intimação dos comandantes do BOPE e do Batalhão de Choque e do Secretario de Segurança com objetivo de prestar informações acerca dos fatos alegados na inicial, bem como adotar de imediato, providências necessárias para manter a ordem e a tranquilidade pública no local da incursão a fim de que seja assegurado o direito de ir e vir da população local. A Assessoria de Comunicação do próprio Tribunal divulgou a notícia como suspensão de buscas domiciliares e cumprimento de mandados de prisão. Houve também repercussão em grandes veículos de comunicação. A ação principal tramita aguardando a apreciação dos novos pedidos.

Ainda é prematura para uma avaliação final dos resultados obtidos com esta demanda judicial, pois o processo está em fase inicial. No entanto, já é possível observar que se trata de um litígio estrutural, na medida em que visa enfrentar questões coletivas, de violações massivas e sistemáticas de direitos humanos em determinados territórios e tendo com alvo determinado segmento populacional, relacionado a uma política pública (dita de segurança pública, porém de controle social violente e sem observância dos limites e formas jurídico-constitucionais). No caso, a conduta administrativa violadora de longa permanência sem transparência, sem prestação de contas e sem responsabilização da alta cadeia de comando, ou seja, daqueles que ordenam as operações e que tem falhado no dever primário de controle e fiscalização, justifica a intervenção judicial para exercício do controle externo da atividade policial e proteção de direitos humanos.

 

V – Documentos

Notícia no Jornal O Globo

Notícia no site da Redes da Maré

Notícia no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

GALERIA DE IMAGENS
GALERIA DE VIDEOS

Organização

Apoio