COMBATE E PREVENÇÃO À TORTURA DAS PESSOAS LGBT PRIVADAS DE LIBERDADE

Resumo

Este caso, apresentado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, trata de execução penal e dos direitos da população LGBT inserida no sistema prisional. Em 2015, a Defensoria Pública criou o Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos (NUDIVERSIS), sendo uma de suas funções o monitoramento dos direitos da população LGBT inserida no sistema carcerário, que tem realizado a capacitação e formação de agentes penitenciários em direitos humanos, com o objetivo de modificar a cultura do sistema prisional e garantir um melhor acolhimento das pessoas em condição de vulnerabilidade por sua identidade de gênero ou orientação sexual. Na apresentação detalhada do caso, estão disponíveis, também, a Cartilha sobre acolhimento de pessoa LGBT no cárcere e uma notícia.

O Caso

Nome da/o(s) Participante(s):
Lívia Casseres – Defensora Pública
Thalita Thomé Dos Santos – Assistente Social da Defensoria Pública
Marina Wanderley Vilar De Carvalho – Psicóloga da Defensoria Pública
Debora Diniz – Coordenadora da Assessoria de Comunicação da DEFEN

Instituição/Organização/ Movimento Social: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO

Estado:
RIO DE JANEIRO

I – Resumo da Situação-Problema:

Criado em 12 de maio de 2011, por meio da Resolução DPGE nº. 580, o Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos – NUDIVERSIS – tem como atribuição, por aplicação subsidiária da Deliberação do Conselho Superior da DPGE nº. 82 de 14 de dezembro de 2011, especialmente em seu art. 20, inciso VI, propor as medidas cabíveis para a promoção e proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais da população LGBT, no sentido de efetivar o direito à igualdade e à não discriminação.

Além disso, preveem os arts. 3º-A e 4º, inciso IX, da Lei Complementar nº. 80/94 serem objetivos da Defensoria Pública a prevalência e a efetividade dos direitos humanos e sua função institucional a defesa dos direitos humanos e dos grupos vulneráveis que merecem especial proteção do Estado.

Nesse contexto está inserida a atividade de monitoramento dos direitos da população LGBT inserida no sistema carcerário por este Núcleo Especializado, destinada à provocação de políticas públicas diferenciadas na gestão da administração penitenciária, no sentido de combater a discriminação a que estão sujeitos os gays, lésbicas, homens e mulheres transexuais e pessoas travestis privadas de liberdade.

Dada a condição fática de extrema vulnerabilidade das pessoas LGBT privadas de liberdade e, de outra banda, considerando o amplo arcabouço normativo de proteção destes sujeitos, a partir de 2015 o NUDIVERSIS passou a fiscalizar a implementação prática das garantias já há muito consolidadas no plano normativo.

Assim, sobretudo diante das denúncias trazidas em janeiro de 2015 ao NUDIVERSIS pelo Conselho Estadual de Direitos da População LGBT, foi estabelecido um cronograma de visitas às unidades prisionais e de entrevistas com pessoas LGBT presas. É mister frisar que a atuação do NUDIVERSIS baseou-se ainda no Caderno de Ações e Metas do Programa Rio Sem Homofobia para o período de 2011-2014. Somente no âmbito da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, foram traçadas dezessete metas.

Dentre elas podemos enumerar: a) a capacitação dos funcionários que trabalham com a população carcerária sobre a homofobia e direitos da população LGBT; b) a criação de resolução que regulamentasse o corte de cabelo e o uso de vestimentas femininas às mulheres transexuais e travestis encarceradas e c) o acesso à terapia hormonal às transexuais e travestis encarceradas.

Desde o ano de 2011 houveram inspeções da Defensoria Pública no sistema penitenciário, nos autos dos procedimentos administrativos E-20/11.740/2011 e E-20/001/2932/2014, que cuidam especificamente das identidades LGBT. Há registro de uma primeira visita realizada em 05/09/2011 ao Presídio Evaristo de Moraes, na qual foram relatados atos discriminatórios por parte dos agentes penitenciários e desrespeito à identidade de gênero. Cabe citar o procedimento administrativo deflagrado em 2014, perante a Vara de Execuções Penais, a fim de garantir a terapia hormonal às pessoas transgêneros reclusas no Estado do Rio de Janeiro (autos nº. 2014/0186903-5 VEPRJ), o qual ainda pende de decisão judicial.

A partir de fevereiro de 2015, com a expiração do prazo do caderno de ações e metas 2011-2014, foi intensificado o monitoramento da questão. Em 04/02/2015, foi realizada uma visita conjunta dos membros do Conselho Estadual LGBT ao Presídio Evaristo de Moraes.

Em seguida, durante os meses de fevereiro e março de 2015, a equipe do NUDIVERSIS percorreu as unidades prisionais masculinas: Penitenciária Esmeraldino Bandeira (regime fechado), Instituto Penal Plácido Sá Carvalho (regime semiaberto) e Penitenciária Alfredo Tranjan (regime fechado), percorrendo um total de 04 unidades prisionais e entrevistando, em caráter de sigilo, em torno de cinquenta travestis e mulheres transexuais ao longo de dois meses, por meio de extenso questionário construído com a participação da equipe técnica do NUDIVERSIS.

Contribuíram, ainda, para as conclusões extraídas da presente atuação parecer solicitado ao Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione e à Câmara Técnica de Endocrinologia do CREMERJ, bem como parecer da Equipe Técnica da Defensoria Pública, que aborda a perspectiva da Psicologia e das Ciências Sociais.

A partir da análise dos depoimentos colhidos pelas mulheres transexuais e travestis ouvidas em cada uma das unidades prisionais visitadas, constatou-se que não há respeito aos direitos humanos no acolhimento das pessoas LGBT no sistema prisional. Não houve relatos explícitos de agressão física ou sexual por parte dos presos heterossexuais e cisgêneros.

Contudo, dado o quadro de intimidação e violência estabelecido pelas facções criminosas, não é possível descartar a prática de relações sexuais forçadas (ainda que aparentemente consentidas) e de outras formas de agressão não reveladas. É certo que o cenário de discriminação, marginalização e exclusão social que se verifica na sociedade como um todo é reproduzido no interior do cárcere, por parte do coletivo de presos heterossexuais e cisgêneros, os quais segregam os presos LGBT no cotidiano da cadeia, proibindo-lhes, por exemplo, a utilização dos mesmos copos e talheres e até mesmo do parlatório.

Quanto ao Poder Público, além da patente omissão face à segregação social existente entre presos, foram narrados graves atentados aos direitos humanos das mulheres transexuais e travestis. Dentre eles, podemos citar: agressões físicas por parte do Serviço de Operações Especiais (SOE) e Grupamento de Serviço de Escolta (GSE) da SEAP, motivadas pelo simples fato da identidade transexual da pessoa; homofobia por parte dos agentes penitenciários; corte de cabelo obrigatório, sob pena de imposição de punição de isolamento na unidade; revista íntima realizada por agentes masculinos, de maneira humilhante e pública, expondo-se a pessoa revistada desnuda, no meio do coletivo de presos homens, com verificação pública, inclusive da cavidade anal; obrigatoriedade do banho de sol com o tórax desnudo, o que obriga as detentas a exporem seus seios (muitas têm até prótese mamária), no meio dos homens, ou a não receber luz solar; desrespeito ao nome social no tratamento cotidiano dos presos pelos agentes penitenciários; ausência do serviço de saúde adequado, não havendo dispensação de medicamentos para terapia hormonal ou qualquer acompanhamento multidisciplinar da pessoa transexual e travesti; carência de serviços no âmbito da prevenção das DST/HIV/AIDS etc.

É imprescindível asseverar que os argumentos de proteção da disciplina e da segurança pública no ambiente prisional não têm o condão de autorizar a manutenção das violações de direitos, uma vez que, especificamente na Unidade Prisional Evaristo de Moraes, observou-se um ambiente de mínimo acolhimento e respeito, apesar da existência de problemas relacionados à saúde, bem como à revista e visita íntimas. Isso porque as travestis e transexuais alocadas naquele presídio têm permissão, por exclusiva discricionariedade do gestor, para manter os cabelos longos, utilizar vestuário feminino, receber objetos pessoais de uso feminino e costumam ser tratadas pelo nome social.

Além disso, põe-se em xeque de maneira definitiva o argumento falacioso da segurança e da disciplina o fato de que, nas unidades femininas, não é imposto o corte de cabelo, é permitido o uso de shorts e tops no interior das celas e há distribuição para as internas de anticoncepcionais. Tal conjuntura demonstra que as pessoas LGBT encarceradas no Estado do Rio de Janeiro sofrem atos intencionais de violência física e psíquica motivados por sua orientação sexual e identidade de gênero, o que implica dizer que estão sujeitas à tortura, considerando-se o conceito adotado pela Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

II – Resumo da Ação e/ou Medidas Judiciais; Extrajudiciais e/ou Políticas Adotadas:

O gravíssimo cenário acima exposto foi levado a público pelo NUDIVERSIS na sessão ordinária do Conselho de Direitos da População LGBT, realizada em 14/04/2015, a qual teve a participação do Secretário de Administração Penitenciária recém-empossado, a convite da SUPERDIR/SEASDH.

Merece nota ainda a reportagem publicada pelo jornal “O DIA” na mesma data, intitulada “Nas Grades do Preconceito”, que denunciou à sociedade como um todo as condições encontradas pela Defensoria Pública, trazendo o relevantíssimo relato pessoal de “Maria”, egressa do sistema penitenciário e vítima direta da violência institucional contra a mulher transexual. Durante as negociações realizadas em parceria com a Superintendência de Direitos Difusos e Coletivos da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos – SUPERDIR/SEASDH -, foi acordada a edição de Resolução pela Administração Penitenciária que disciplinasse o tema no Estado do Rio de Janeiro, bem como a criação de um grupo de trabalho destinado à fiscalização de sua progressiva efetivação prática, ambas as medidas previstas para a data de 15/05/2015.

Toda a articulação culminou na edição da Resolução SEAP 558/2015, em junho deste ano, a qual, em redação semelhante à norma já adotada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, regulamentou a proteção à pessoa LGBT privada de liberdade, banindo o corte obrigatório de cabelo de transexuais, facultando a custódia em local adequado à identidade de gênero da pessoa, proibindo qualquer tipo de castigo fundado na orientação sexual ou identidade de gênero, dentre outras relevantes disposições.

Com a edição da normativa, foi criado ainda um Grupo de Trabalho intersetorial, composto pela SEAP e pelo Conselho LGBT – no qual tem assento a Defensoria Pública, por meio do NUDIVERSIS -, dedicado a monitorar as condições de privação de liberdade dos LGBTs (Resolução Conjunta SEAP/SEASDH RJ 34 de 29 de maio de 2015).

Consolidada a parceria entre as instituições envolvidas, foi possível, ainda, a inserção da Defensoria Pública na capacitação e formação dos agentes penitenciários em direitos humanos, com o fim de modificar a cultura da instituição e permitir um melhor acolhimento de todo e qualquer indivíduo no sistema prisional, especialmente daqueles em condição de vulnerabilidade por sua identidade de gênero ou orientação sexual.

Somente no ano de 2016 foi realizada pelo NUDIVERSIS, com a participação da equipe técnica multidisciplinar, a formação de pelo menos 260 (duzentos e sessenta) agentes penitenciários.

Além das atividades teóricas de capacitação e debate, foi desenvolvido material gráfico informativo – a cartilha intitulada “Como Acolher a Pessoa LGBT no Cárcere”, cujo texto foi elaborado pelo NUDIVERSIS e diagramado pela Assessoria de Comunicação da Defensoria Pública. O material foi distribuído para todos os agentes capacitados, bem como para dezenas de presos e agentes da Unidade Prisional Evaristo de Moraes.

III – Parceiros Envolvidos:


Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por meio do NUDIVERSIS, da equipe técnica multidisciplinar do núcleo e da Assessoria de Comunicação; Conselho Estadual de Direitos da População LGBT; Secretaria de Estado de Administração Penitenciária.

IV – Resumo dos Resultados Obtidos:


Sem a necessidade de judicialização, foi possível adotar norma totalmente inédita no Estado do Rio de Janeiro, destinada à proteção das pessoas LGBTS privadas de liberdade.

Além disso, a partir do trabalho em parceria das diversas instituições envolvidas, o Presídio Evaristo de Moraes passou a ser a referência da SEAP para acolhimento de presos LGBT, facultando-se no momento da autodeclaração do preso como LGBT a sua transferência para aquela unidade.

De outro lado, foi possível estabelecer um projeto de transformação da cultura institucional da SEAP através das formações promovidas pela Defensoria Pública, com difusão de material gráfico informativo, realização de palestras e cursos.

 

V – Documentos

Cartilha sobre acolhimento da pessoa LGBT no cárcere

Notícia no Jornal O Dia

GALERIA DE IMAGENS

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